Segue um texto tão esquisito, de minha autoria, que me vi na obrigação de postarBeatriz ria-se do ciúmes que suas amigas derramavam sobre seus namorados. E quando a comicidade dissipava, dizia a si mesmo, um tanto ríspida: "É irracional!" Não repreendia, da mesma forma, às amigas, por quem zelava, apesar de o quase não demonstrar. Mas, àqueles que a conheciam intimamente, era óbvio que o simples não repreender era quase uma prova de amor e amizade incondicional, tal era sua dificuldade em demonstrar o afeto.
Fato é que, apesar de tal defeito de espírito, possuía um namorado. Claro que para empreender tal tarefa não bastaria um cavalheiro qualquer destes que se acham aos montes pelas ruas. O rapaz em questão tinha os sentidos agudos - agudíssimos, o suficiente para ouvir as batidas silenciosas do coração de Beatriz, tal qual um morcego compreende seu próprio sonar (aqui o leitor me há de desculpar a falta de lirismo e poesia na aplicação da metáfora; digamos que narradora e personagem compartilham da mesma falta de tato).
Mas quis o destino que a cusparada subisse e lhe caísse direto, em cheio, na testa. Mal da modernidade, Beatriz e seu namorado tinham ORKUT. Assim como também o tinham todas as demais garotas do mundo, ou ao menos as que pareciam nutrir algum tipo de interesse pelo rapaz. E disso também ria-se Beatriz. Era como se a possibilidade de malograr os planos amorosos das supostas rivais lhe dessem algum tipo de energia a mais. No entanto, um scrap saltou-lhe os olhos, certa vez. Uma moça regozijava-se por o haver encontrado na manhã anterior, e gozava ainda da alegria que lhe daria o próximo encontro, que se daria na próxima sexta. Nada mais se pôde tirar como informação do curto scrap.
Não era do feitio de Beatriz permitir que tais banalidades encontrassem abrigo em seus pensamentos, mas é certo que havia algum quê de malícia nas poucas e públicas letras que na internet se publicavam. Que seria aquilo?, ela se surpreendeu a pensar minutos depois. Mas assim que o pensamento que lhe açoitava silenciosamente o subconsciente teve o atrevimento e audácia de avançar para o consciente, Beatriz o suprimiu e gracejou consigo mesma, mas com certa severidade, por haver permitido que tal ideia se alojasse como acontecera.
E tal era sincero o ânimo de Beatriz que ela, de fato, não pensou mais nisso. Até o dia seguinte - sexta-feira - quando ocorreu-lhe saudades do namorado. Não as saudades avassaladoras que se espera em jovens namorados, mas finas fitas de cetim que a embalaram, quase confortáveis, quase carinhosas, de uma vontade aprazível de ter com ele, de ouvir-lhe a voz. Sem desesperos nem arrebatamentos, tudo condizente com o feitio de Beatriz.
Telefonou.
- Ele está?
- Não... saiu. Mas quando voltar...
E Beatriz não ouviu mais nada. A lembrança do scrap veio à tona, como inundação ou avalanche, ou qualquer outro capricho da silenciosa natureza quando esta resolve revoltar-se contra o que o homem faz em sua superfície que afete o seu equilíbrio. Beatriz não pôde refrear a imaginação, e quase viu o seu namorado - seu homem - SEU! - nos braços da rapariga da foto. Teve que ir checar o orkut novamente. Era bonita. O pior de tudo é que ela era bonita.
Mil conjecturas, acompanhadas de mil exclamações, pululavam no palco de sua consciência, ora em tom de explicar por ele, ora em tom de acusá-lo com um "o que você me diz disso agora?!", e ouvia mentalmente sua própria voz, cada vez mais explosiva, cada vez mais imperiosa, cada vez mais
BRAAAVA, subindo em volume e tom.
A racionalidade de Beatriz sentia-se em segundo plano e o orgulho já se mostrava desorientado. Ouso dizer que o interior dela se sentiu ainda mais confuso do que ocorre na alma dos que se deixam levar pelas garras do ciúme e do desespero, pois nesses os sentimentos em turbilhão já se alojaram como se fossem não hóspedes, mas proprietários; já estão, pois, acostumados a tais arroubos e explosões.
E por estarem acostumados, decidem-se por soluções simples - dramáticas, mas simples, não na execução, mas no know-how, já que a tantos séculos os apaixonados recorrem a tais soluções: pensa-se em morte (própria, do namorado ou do rival), passa-se à mão a caneta e papel, na tentativa de expressar e se desfazer da dor em verso ou prosa, ou busca-se alguma ocupação produtiva qualquer.
Beatriz nada disso conhecia. Mal sabia chamar de ciúme o incômodo viceral que se lhe abatia. Só podia descrever para si mesma a dor física, bem ali na região do abdômem, que parecia dar voltas e cambalhotas.
A racionalidade de Beatriz resolveu dar passo à frente e destacar-se no palco da consciência. Acalmou a platéia enfurecida e todos os atores que já não sabiam a sua deixa. "Para dor de estômago", concluiu, "a solução é uma só".
Beatriz pegou o Machado de Assis que ia lendo por aqueles dias e trancou-se no banheiro. As linhas do romancista a distraíram um pouco do propósito, já que a necessidade fisiológica não era natural e sim de ordem psicológica. Levantou os olhos da obra de Assis e concentrou-se na própria obra. Agora sim distinguia-a. Concentrou-se mais. Estava difícil, mas empenhou-se. Finalmente, sentiu aquele ciúme todo ir sólido para fora de si.
Acabado o trabalho, lançou os olhos à sua obra, antes de acionar a descarga. O produto era pequeno, fino, sem graça.
- Era só isso o mal de que, há pouco, padecia?
Deu a descarga. E nunca mais voltou a ter ciúmes novamente.